quinta-feira, 24 de abril de 2008

24 de Abril - San Juan de Chamula, México

Apesar de todo o mal-estar que estou sentindo, consegui aproveitar o dia e fiquei fascinado com tudo que aprendi hoje, pois sabia que coisas como estas existiam, mas nunca tinha visto com meus próprios olhos e tudo que vi é realmente incrível, sobretudo nos dias de hoje.

Acordei pro café, mas não consegui comer, minha dor de barriga tinha piorado e eu já sabia que então não era por causa da festa de dois dias atrás, talvez fosse o remédio para as picadas que fosse muito forte e eu estivesse tendo uma reação a ele, ou ainda alguma coisa que comi que não tinha me feito bem. De qualquer forma já tinha combinado com a minha ¨família¨ que íamos pra Chamula e eu não ia me dar por vencido. Eu ia também.

Arrumei minhas coisas e fomos primeiro pro terminal de ônibus, pro pessoal comprar as passagens deles. Eles estão indo embora hoje à noite, todos, eu vou ficar, porque tenho que ir pra Guatemala e são caminhos opostos. Eles vão pra Puerto Escondido e eu pra Comitan. Isto vai ser duro, porque está tudo tão perfeito nos últimos dias, mas eu sabia que uma hora ia acontecer.

Depois de comprarem as passagens, pegamos um táxi pra Chamula, o motorista falou que seriam vinte pesos por pessoa, mas que por sessenta pesos ele nos levaria, seria nosso guia e nos traria de volta, todos achamos justo e resolvemos aceitar. Só que tinha um problema, ele não falava inglês, então seria da seguinte forma, ele explicaria em espanhol, eu prestaria atenção e explicaria pros outros em inglês, tudo certo.

Chamula é um território indígena, que mantém seus rituais e crenças até hoje, é sentir antigas tradições na pele. Só são permitidos na cidade os Maias que ainda seguem as antigas tradições, mas existem umas diferenças, as antigas tradições sofreram algumas mudanças, devido ao catolicismo imposto pelos espanhóis, tudo muito confuso, mas encantador. A língua da cidade não é espanhol, é Maia, e não tem nada a ver com espanhol, as pessoas ainda se vestem com suas antigas vestes e seguem boa parte das tradições. Pra completar, é um dos territórios zapatistas mais importantes do México, se não for o mais. Ou seja, muita informação e enriquecimento cultural.

Os Maias acreditam em muitos Deuses e em vidas passadas, por isso não se preocupam com a saúde física, se preocupam com a saúde da alma, se sua alma estiver saudável, você estará saudável. A morte não é tão significativa, porque se você morrer e sua alma não estiver enferma, você não terá problemas em sua próxima vida, uma contínua evolução espiritual. Porque será que me sinto tão bem neste meio, nos locais que foram território deste povo?

Chegamos em Chamula e fomos comprar o boleto (20) pra entrar na igreja, que é um dos locais mais interessantes da cidade. Antes, demos uma volta pelo pátio que tem na frente da igreja, onde existe um tipo de mercado, só com artesanias Maias e outras coisas que eles produzem. Paramos para a primeira explicação do nosso guia. Ele nos disse que a cidade não tem um prefeito, tem um simbólico que não manda nada, a cidade tem noventa autoridades-tradicionais, que são posições que só podem ser ocupadas por homens, mas homens casados. Estes são escolhidos a cada ano pelos homens maiores de dezoito anos, e são eles que controlam o poder político da cidade. Eles usam trajes especiais pra mostrar sua posição e são totalmente respeitados.

Chegamos na porta da igreja, e ele começou a me explicar sobre a mistura que houve entre o catolicismo e as crenças antigas. Eles adaptaram os santos católicos para o lugar de seus Deuses, mas não acreditam em Jesus Cristo, acreditam em outro homem que também está crucificado, mas tem outro nome, Jesus é um santo como todos os outros. Para cada santo existe um grupo de homens que são responsáveis pela realização de suas festas e do cuidado da alma deste santo, são os Maior-Domos, eles também tem um traje especial que é completamente diferente do traje das autoridades-tradicionais, mas os Maior-Domos são mais respeitados. O santo mais respeitado e responsável pela maior festa é San Juan Bautista que tem o maior número de Maior-Domos.

Muitas informações, mas é fácil de entender quando se está lá, porque é possível vê-los. O arco da igreja tem três cores, uma para o físico, verde escura, uma para mente, azul, e uma para a alma, a mais importante, verde clara. As flores de quatro pétalas representam o norte, sul, leste e oeste, direções que apontam à várias divindades da natureza. As flores de oito pétalas representam as oito virtudes mais poderosas do ser humano, como amor, respeito, família, trabalho, não lembro todas, mas tudo tem um significado.

Dentro da igreja é que acontece o incrível, onde é possível ver os rituais acontecendo. Não existe um sacerdote, existem vários xamans, e eles são reponsáveis por identificar uma enfermidade na alma e curá-la. Para isso, são usados ovos de galinha pra enfermidades amenas e a própria galinha quando a doença é grave. Os ovos ou galinha são passados pelo corpo das pessoas enquanto o xaman sente o pulso da pessoa a ser curada pra identificar sua doença, na lama sempre. Os ovos são quebrados dentro de um balde com água, e devido a forma que tomam na água o tratamento será decidido, no caso da galinha, ela é morta e de acordo com o caminho formado pelo sangue o tratamento será escolhido, nunca tinha visto nada igual. A igreja também serve para fazer pedidos, tanto para o bem quanto para o mal, o número de velas que são acesas é de acordo com o tamanho do pedido, as cores também são importantes, pretas são para o mal, amarelas para o trabalho, e assim por diante.

Ficamos na igreja por cerca de uma hora, várias outras coisas foram explicadas, como os desenhos no teto, a disposição dos santos e o fato de eles usarem uma bebida alcóolica muito forte para os rituais. Os arrotos significam o mal deixando seu corpo e eles bebem e arrotam o tempo todo. Não sei, é meio macabro, como a macumba, mas ao mesmo tempo é muito interessante, pelo menos pra mim.

Um Maior-Domo nos convidou para ir a sua casa e achamos que seria interessante e fomos. A casa é na verdade um templo, o cheiro de incenso é muito forte e toma conta do local, velas estão por toda parte e o seu santo tem um lugar privilegiado na casa. Todos tomamos um gole da bebida alcóolica pra poder entrar no lugar, depois do gole descobri que o que eles tomam é cachaça, porque é igualzinho, perguntei e eles me disseram que é um destilado da cana-de-acúcar, só podia. Ele nos explicou um pouco como funciona as coisas e depois tivemos que pagar (10) pelas informações, mas valeu a pena.

No caminho de volta para o carro, o guia nos explicou que eles não recorrem à medicina tradicional porque ela só cura o corpo. Eles tem para isso seus médicos, são cinco tipos, mas o mais importante é o que sobe a montanha sagrada e faz oferendas aos Deuses, nos pontos cardeais para pedir saúde, chuva pra bons plantios e coisas do tipo. As mulheres não usam sapatos nem chinelos, porque como são elas que dão à luz, tem que estar em contato o tempo todo com a terra pra absorver sua fertilidade. Lembrei do que eu falei sobre andar descalço pelos lugares e que isso é completamente diferente.

Depois de tudo isso fomos ao cemitério dos Maias, mais informações, sobre as cores das cruzes nos túmulos e sobre os rituais de dois de novembro, o dia dos mortos, quando todos tem que tocar uma corda na igreja para despertar seus mortos e depois fazer suas oferendas no cemitério. Todos usam uma flor para colocar no túmulo, parecido com um girassol, porque depois que escurece, são estas flores que vão iluminar o caminho dos mortos de volta para casa.

Tentei descrever bastante para vocês esta parte, porque fotografias de muitos lugares não são permitidas, porque roubam a alma das pessoas e dos santos. E você já imaginou depois de tudo que falei, o que significa para este povo perder suas almas. Se isto acontece, eles não tem mais motivos para viver, então se um dia forem para lá, não tirem fotos, respeitem suas crenças e tentem lembrar de tudo que vocês aprenderam lá, sem fotografias. Escrevam em algum lugar, pra poderem ler depois, como estou fazendo agora.

Saímos de lá e passamos em outro lugar onde tem um vila zapatista, mas não como Chamula, pelo fato de ser brasileiro, me respeitaram mais que os outros e deixaram eu entrar na casa e me convidaram pra experimentar algumas comidas, eu aceitei para não ofender ninguém, mas comi só um pouco porque os outros estavam me esperando do lado de fora.

No caminho de volta, enquanto os outros conversavam no banco de trás, vim conversando com o motorista sobre a revolução de 1994 e sobre como estavam os zapatistas hoje em dia, o motorista me contou muitas coisas, porque ele nasceu e sempre viveu em San Cristóbal, ou seja ele estava lá no dia da luta, muito interessante, banho de história. Pedimos pro motorista pra nos deixar em um restaurante tradicional de Chiapas. Ele nos levou pra um bem bom, pagamos (60) e fomos almoçar.

Pedimos uma Parrillada Chiapateca (140) para dividir para todos, o prato é excelente, mas para mim, nada poderia ser excelente com as dores que estava sentindo, comi porque sabia que tinha que comer, bem devagar, de bocado em bocado. Tinha um senhor tocando um instrumento musical que não lembro o nome, fui lá aprender um pouco, enquanto os outros terminavam e depois fomos embora.

Comprei uma coca no caminho (10) pra ver se eu melhorava, mas nada, resolvi que ia deitar um pouco pra dormir. A Christa deitou comigo pra fazer reike de novo, ficamos lá um pouco conversando até que dormimos. Acordamos por volta das sete, ela foi arrumar as coisas dela pra ir embora, eu fui escrever no caderno dela e da Anja pra elas lembrarem de mim. A Marina não tinha chegado do passeio dela ainda, ela tinha ido pra ¨Lagunas de Montebello¨, que eu vou depois de amanhã, acho.

Eu tinha combinado de ir no teatro com o Heine e um pessoal do albergue, uma peça que se chama Palenque Rojo (100), então me despedi das meninas, porque quando eu voltasse elas já teriam ido. A Christa me deu uma tornozeleira de presente, que na verdade não é só uma tornozeleira, é muito mais que isso. Me despedi com aquele abraço do Insight e fui pra peça. Estes momentos às vezes doem demais, apesar de termos nos conhecido a só quatro dias, parece que nos conhecemos faz muito tempo, mas tenho certeza que logo vou encontrá-las de novo.

Fui pra peça e a Marina não tinha chegado, não consegui me despedir dela, que pena, queria conversar com ela antes dela ir embora. A peça é muito interessante, conta a história de uma guerra que houve entre duas cidades Maias, Palenque e Toniná, e a produção é muito boa, é toda em dialeto Maia, mas você recebe um folder que conta a história em vários idiomas, em português não tem, é claro.

Depois de uma hora e meia a peça acabou, me despedi do Heine, que estava indo pro terminal encontrar as meninas, pra seguirem pra Puerto Escondido. Desejei boa viagem, ele o mesmo, outro bom amigo que fiz. Voltei pro albergue com quatro inglesas e me senti um pouco sozinho, minha ¨família¨ tinha ido embora, agora tenho que começar tudo de novo, pensei. Sentei em volta da fogueira com todos, comemos Marshmallow, e todos resolvemos ir pra um barzinho (50), fiquei lá uma hora e resolvi ir embora, minha dor continuava e pra piorar tinha dor de cabeça também. Dormir é sempre o melhor remédio, pensando nisso fui direto pra cama, mas apesar de tudo foi um bom dia.

Meu beijo de hoje vai pra esta família que fiz nestes últimos dias e que desejo tudo de bom e uma ótima viagem:

- Heine, Marina, Anja e Christa, boa viagem, energias positivas e fiquem com Deus.
- Tina, porque hoje eu queria seu chazinho no sofá de casa.

4 comentários:

Cintia disse...

Tobi
Quando comecei a ler o post de hoje achei que teria 'sinais' do seu mal-estar em cada linha. Me enganei, felizmente.
Depois, comecei a me sentir quase que 'acuada' num canto, de tanta informação ao mesmo tempo. Parei, dei uma respirada funda e volktei a ler, com outra postura, como a gente faz quando precisa entender otexto pra prova do dia seguinte. Deu mais certo.
No final eu simplesmente estava de boca aberta, pela quantodade de informação que você conseguiu reter na sua cabeça pra poder nos passar. Menino!!! Que cabeça e que memória! Porque, como vc disse, pode parecer confuso, e é mesmo! Acho que você teve a ajuda das imagens e das sensações, coisas que gravam dentro da gente e ajudam a memória.
Adorei o dia de hoje, adorei viajar com você hoje. Hoje foi tão diferente dos outros dias, né? Legal!

Agora, tenho que te falar uma coisa: se com dor de barriga você bebeu cachaça, comeu umas comidas diferentes (só pra não ofender), comeu uma Parrilada (nossa, tive a pachorra de pesquisar o que era) e ainda Marshmallow no fim da noite!!! O que você come então quando está bom? :D

Tobi, fica frio. A sorte está ao seu lado, e quem sabe você ainda vai decobrir algo nessa dor de barriga aí!
E como diria o grande (?) Yoda, "que a força estea com você"!
Beijos e carinhos mil!

Unknown disse...

Tobi...
Realmente é pra ficar admirada de quanta informação você absorveu mesmo num dia em que não tava legal...acho que foi porque o tema é realmente intrigante e interessante, mas o principal, você estava muito bem acompanhado, por esses amigos pelos quais aconteceu esse feedback tão bacana...adorei saber que a Christa fez reike em você...curti mesmo...
Também acho que vocês vão se reencontrar, filho...essa viagem é só o começo, vai te abrir muitas portas...que coisa boa, né?!
Beijos meu querido...
Fique bem, fique com Deus...
Te amo.

Cândida Molina disse...

Ai que peninha de vc.Devia ter aproveitado para fazer um tratamento com ovo ou galinha, ou o que quer que seja. Que experiência maravilhosa o contato com essa cultura fascinante. Estou aprendendo muito com essa sua viagem. É revoltante como os espanhóis interfiriram nisso. Espero que já tenha melhorado. Bjs e fica com Deus.

Cintia disse...

Tobi, apesar de já ter comentado sobre este post, queria fazer uma colocaçãozinha em relação às fotos: algumas são lindas, outras, nem tanto... mas acho que em algumas situações que você descreve e só depois coloca a foto, é como um livro que se leu e depois viu o filme (estou roubando o exemplo, eu sei). Certas coisas não se pode transmitir em imagens sem movimento ou sem as sensações junto. Seus relatos superam, e muito, as fotos. Então, nem vejo muito bem o filme porque quero deixar o livro vivo dentro de mim, entende?
Um beijão!